O que se ouvia apenas, além dos carros que
rapidamente cruzavam os olhos semicerrados do réptil, era o nada. Ah, aquele
apito, o que traria aquele apito? Não conhecia Graciliano, muito menos o Mutum,
mas sabia que havia algo melhor longe dali.
Havia algo a romper tanto quanto a própria
morbidez, aquela rodovia, aqueles veículos. Carros, caminhões, motos. Se Deus
havia dado a ela a paciência nos movimentos, tinha de colocar os neurônios a se
prevalecerem disso. Sim. Um tai chi chuan ao cérebro. Tinha tempo pra isso.
Ficava olhando o vaivém frenético dos carros. Nem
se atrevia a tentar acompanhar com olhos, porque sempre aparecia outro. Não
cabe aqui precisar quantas semanas se passaram, cabe ressaltar que o exercício
poderia dar resultado. E aquele apito, o apito daquele trem.
E sabe-se lá qual foi o exato momento que a luz
atingiu sua lenta e comedida inteligência. Isso: havia um espaço entre um
veículo e outro. E, dias depois, percebeu que com o sol alto, o tráfego era
maior e que lua trazia bem menos barulhos. Decidiu não pensar como pegar o
apito, porque seria algo mais ousado, preferiu se concentrar em como atravessar
sem ser pega.
Algumas semanas depois, teve a certeza de que à
noite o intervalo entre um carro e outro era de 10 minutos. Informação
interessante, porque conferiu esse tempo por semanas. Tentava se concentrar em
não se desconcentrar a cada assovio metálico daquele trem. Caberia agora saber
quanto demoraria para cruzar a pista. Isso. Medir seus passos, ainda que
tivesse que ganhar mais dias para tal.
Na noite anterior, ela ensaiou. Viu que em dez
minutos poderia cruzar tranquilamente a rodovia. Sentiu a delícia do novo.
Sabia que todos os caminhos a levariam àquele apito. E se tartaruga sorrisse,
ela sorria naquela noite.
Tomou ar e decidiu que o próximo carro apareceria
em um minuto e seria o abre-alas para ir a campo. E o veículo passou. Apertou
seus olhos e foi em frente, lenta e corajosamente, ela seguiu triunfante,
gloriosa, colossal. E em menos de dez minutos cruzara seu caminho e sentira o
bafo rente de um imenso caminhão a esquentar suas pegadas.
E se tartaruga pudesse gargalhar, ela o faria
agora. Conseguiu. Orgulhosa de si mesmo. O apito mais próximo, uma nova etapa
mais próxima. Não havia outra coisa a se fazer, seguir em frente. E o fez.
Grandiosa, imensa, entretanto bem menor que o caminhão que a acertara, pista
dupla tem dessas coisas.
Coitadinha da tartaruga, Dri! Morreu feliz, mas morreu... :(
ResponderExcluirPois é, Lu, pelo menos morreu tentando! Há pessoas que morrem rezando para algo as tentar!
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