terça-feira, 31 de dezembro de 2013

OS MORANGOS DE NOTRE DAME

Sempre julguei complicada a tarefa de rever um ano todo e classificá-lo como bom, regular ou ruim. A vida, com seus dias contínuos, colocou caprichosamente as benditas folhinhas de calendário para demarcarmos momentos bons ou nem tanto, pontuarmos mudanças ou apenas quando o caminhão de gás voltará com sua música peculiar.

Não escrevo o último texto de 2013 com a chata e batida pretensão de mostrar como foram os dias de minha vida nos últimos 12 meses. Fato é que existem dias que gostaríamos que voltassem outros que tentamos esquecer, mas não conseguimos justamente por tentar isso ou aqueles que realmente voaram de nossa mente e pararam em um meio-fio qualquer.

Uma curiosidade que não deveria deixar passar veio da última frase do último texto do meu blog em 2012: “... e que te levem a qualquer esquina de Paris”. Foi isso que desejei ao mundo e a mim mesmo.

E há 15 dias, cada vez que cruzava uma esquina por lá, era essa frase que ressoava em minha mente. E foi dentro de uma brasserie, numa esquina qualquer, não de uma capital qualquer, que provava o melhor morango do mundo.

Sim, quando mordi aquela torta, pensei que o sabor da fruta me era de domínio há décadas. Não. Não era. E foi nessa esquina que fechei os olhos e senti o mais doce dos sabores que já senti em toda minha vida. Paciente e deliciosamente, saboreei os exatos 8 morangos – sim, eu contei – daquele doce, de olhos fechados.

E cada vez que eu os engolia, eu abria minha visão pra ver aquele lugar colorido e aquele frio negativo que batia na catedral de Notre Dame e voltava à movimentada rua ao lado.

Atordoado com a cidade e com o sabor, intriguei-me em pensar que só deveria ser naquele doce. Sim, uma espécie de açúcar refinado ou algo assim que só o velho mundo deveria ter. Na volta de um dos passeios, perto do apartamento em que fiquei, havia uma frutaria. Entrei e comprei uma caixa de morangos.

Lavei-os delicadamente e os provaria. Confesso que não sabia se torcia para terem o mesmo sabor, a mesma doçura que o da brasserie, ou se não os provava para decididamente não apagar aquele sabor, com aquela visão e com a alegria que cantou em meu peito.

“Pros diabos”, pensei – que seja o que é. E era, e é. A mesma doçura estava em minhas mãos e dentre os demais daquela caixa. Não sei por quanto tempo fiquei em pé, na cozinha, saboreando e vendo a mesma música e escutando as mesmas cores que tardes passadas. Único.

Ao voltar para o Brasil, dentre todo o clichê que é com o choque do primeiro com o terceiro mundo, temi ter a certeza de não pertencer ao lugar onde nasci.

Minha mãe havia preparado uma refeição e, em pleno dezembro, encontrado morangos para mim. Sorri ao ter a certeza de que aquela doçura ficou no velho mundo. Nem tinha me livrado das roupas de inverno aqui no calor tropical, fui direto a eles, peguei um e disse a ela: “O sabor disso aqui lá é algo sem igual”.

Mordi e percebi que o sabor era o mesmo. Sim. Por alguns momentos, eu estava em Paris mais uma vez. Algo mudou e hoje percebo que uma viagem não traz somente uma cultura diferente, uma experiência nova. Trouxe uma nova pessoa.

Não sei qual foi o exato momento dessa mudança, mas garanto que existem coisas definitivas em nossas vidas, tão doces e saborosas como os morangos de Notre Dame.      

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

TPM

Fato: a TPM é a esquizofrenia sem remédio. É digna de estudo, de discussões e também de constatações. Se estivesse numa TPM, Cleópatra morderia a cobra, Maria Antonieta decapitaria o algoz e a Lady Godiva atropelaria a plebe com o cavalo. Quem acredita que a menina de O EXORCISTA estava possuída se engana, pura crise extrema de TPM. E todos puderam ver o que a Uma Thurman fez em KILL BILL durante várias delas.

E as piores estão camufladas em anjos. O Piu-Piu, por exemplo, é um passarinho fêmeo do mal. E ela era linda, uma beleza angelical, quase puritana. Almoçavam todos os dias no mesmo restaurante natureba, e um dia se viram. Era perfeita. Eles se olharam, na seguinte, um cumprimento, na terceira, um sorriso, um cumprimento e uma refeição.

E naquela noite de sexta, eles saíram. Um beijo. No sábado, mais beijos e o motel no domingo à tarde. Passaram a semana não apenas almoçando, foram happy-hours deliciosos em cafés, pubs e um teatro na sexta à noite. Mede-se o compromisso com alguém pelos compromissos que se tem com o par. Cinema e teatro é namoro iminente. Ela não apareceu no almoço de sexta, mas a peça, uma comédia stand up badaladíssima e cara, porque ela valia a pena.

Ele a achou esquisita, meio seca, ao telefone. Mesmo achando que seria um problema no trabalho, decidiu não arriscar. Achou mais estranho ainda quando sugeriu cancelar o passeio: “Desnecessário, né?!” – disse ela.

Preferiu não pensar, mas teve quase a certeza que ela poderia ter começado a dar defeito. Antes a certeza tivesse sido levada a sério. Naquela noite, ele chegou no horário combinado, ela entrou e não o beijou, entrou xingando o mundo, chefe, companheiros de trabalho etc. Ele sugeriu mudar o programa.

“Já disse que é desnecessário, você é surdo ou o quê? Além do mais, essa peça é cara e tenho que fazer inveja às meninas do trabalho. Ninguém conseguiu comprar. Se não fosse por mim...

Silêncio. Ele havia sugerido, ele havia comprado. Mas sempre a primeira briga, anote, sempre a primeira briga um se cala. Se esse um se cala pra sempre, pronto, a equitação diz “presente”. E a caluda situação se deu até a chegada do teatro. Ele tentou duas conversas, pôs a mão na perna dela, todos os indícios para que o pedido de desculpas aparecesse. Mas nada.

“Tudo lotado, que inferno! Para aqui, eu vou descendo e você estaciona o carro e veja se não demora, não quero ficar sozinha aqui esperando”

Fato, Deus mostra o caminho, sim, Ele mostra, mas o nosso GPS é falho demais. O desconforto, a decepção e o gosto de ingratidão são mais amargos que uma rúcula podre – pleonasmo aqui.  Em 10 minutos estava de volta. “Que demora! Lerdeza!”.

Entraram e havia duas senhoras na primeira fileira ocupando o lugar deles. Ele tentou se adiantar, entretanto... “As senhoras estão cegas ou o quê? Inferno! Devem ser surdas também para pegar a primeira fileira, não escutam?! Esses são os nossos lugares!”. O rapaz educadamente pediu apenas que elas pulassem duas cadeiras ao lado e pronto.

Elas se levantaram com dificuldade, sob olhares furiosos de quem presenciou a cena. E quem acompanha um mal-educado é como uma contaminação, você torna parte dele.

Para muitos, o espetáculo já havia começado. Ele engoliu seco, quis mandá-la à merda, porém preferiu a educação. Mesmo que os olhares de pena e de indignação o encorajassem a isso, ela era linda demais para uma atitude premeditada.

E já se passavam mais de quinze minutos de espetáculo, e todas as piadas não foram de seu agrado. A cada uma, ela se virava ao rapaz e comentava que era ridículo da parte dele rir de algo tão inútil. E tinha virado honra, ele ria de tudo, propositadamente. Ela bufava.

E o armagedon foi quando a piada foi sobre mulheres. Campo minado. E pioraria, quando ele desceu do palco e pediu luz para conversar com algumas da plateia. E se Deus existisse, ele deveria desviar o comediante deles. E ele rezou, e ele se aproximando, e ele rezou, e ele se aproximando.

“Você, bela moça! Mas que cara mais sisuda, luz aqui pra mim, por favor! Nome?”-“Marília...”. “Nome lindo, nome da minha avó e...” – “Nem tudo é perfeito, não é?”- “Marília, sei que atrás dessa cara sisuda deve ter um motivo, uma unha quebrada, uma meia-calça desfiada, um...”

“Um idiota tentando fazer papel de adivinho!” – plateia em silêncio, e o rapaz se escondendo no colo das velhinhas: “Mas por que tanta agressão?”

“Tente fazer uma piada inteligente ao menos! – alguns vaiaram, mas o rapaz era ótimo. “Piada inteligente?” – “Sim, piada inteligente, imbecil!” – “Pra quê, se você não vai entender!” – o público veio abaixo, o rapaz segurou o riso, as velhinhas principalmente, que não viram de onde o tapa veio. Sim, ela o esbofeteou e berrou ao rapaz: “ Vamos agora!!!”

E saiu. Sob vaias e aplausos. O rapaz ficou sentado, enquanto os seguranças a pegavam pelo braço. A luz nele, o comediante ainda com a mão no rosto disse: “Se você for com ela, juro que eu esmurro você!”.

E o rapaz se sentou e continuou só, rindo o restante do espetáculo, até descobriu que as velhinhas estavam na rede social, e amou ver as fotos com elas sob a legenda: O DIA QUE O LOBO TROCOU A CHAPEUZINHO VERMELHO MÁ PELAS VOVÓS.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O DIA QUE PERDI MIL REAIS

Era comum palavras passarem pelos olhos do professor de português. As palavras estavam para ele como os dedos para as mãos. Enfadar-se virou rotina, como assistir ao mesmo filme medíocre ruim e torcer para melhorar no final.

E aquele concurso de redação, ao pé que seguia, premiaria o menos ridículo, e nem o mais otimista dos críticos tentaria algo, nem as mães dos autores trariam louros.

Entretanto milagres podem acontecer e foi o que aconteceu. A primeira linha daquele texto foi melhor que todas as que já haviam deixado para trás. Segunda, terceira, e o primeiro parágrafo iluminado.

Quando se deu conta, já tinha se ajeitado na cadeira e estava debruçado, comendo cada palavra e se deliciando com o carrossel. Não percebeu que sorria com um teor envolvente e raro.

Metade da redação e a campeã já aparecia. O dia estava ganho, a autora – cujo nome fora lido várias vezes – afinal de contas, talentos assim devem ser gravados imediatamente, ganhava seu primeiro fã.

E o professor torceu para que nada mudasse. A excelente qualidade daquela obra atendia prontamente ao desejo do corretor, que abria um largo sorriso a cada linha. Sim. Havia uma luz entre os cegos. Definitivo. Conclusão surpreendente, coerentemente sensacional.

Nota 10, com louvor.

Dia da premiação, mil reais à futura Nobel. A ovação veio quando os mestres de cerimônia leram a vencedora. Um texto empolgante. A moça subiu com todos em pé, aplaudindo, por quase dois minutos ininterruptos. Os corretores abraçaram a vencedora quase como um agradecimento, reverenciando a estrela.

Quando saía do local, uma amiga do trabalho sorria atônita, com um papel meio amassado. Estendeu-o a mim, dizendo “Parabéns pelo prêmio” – não entendi, era a redação vencedora, continuei sem entender, mas reli emocionado o trabalho da moça, e o mais engraçado que não era o nome dela que assinava o texto de seis meses atrás, era o meu.

 

 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

PRAZERES INEXPLICÁVEIS

Talvez tenha sido durante a tarde, de repente havia se lembrado que havia algo especial em sua casa. Um motivo diferente para trazê-lo o quanto antes de volta. Sorriu. Mas imediatamente se lembrou do happy-hour confirmado há uma semana com os amigos.

“Droga”, pensou. Ok, o bar ficava na Paulista, o local tinha boa música, bem frequentado, até a menina do RH, a mesma do sorriso fácil estaria lá, até pensou numa esticada, porém havia algo que o levava mais cedo para casa.

No meio da tarde, começou a tentar esboçar uma desculpa. Uma tia doente, uma dor de barriga inesperada, entretanto, mesmo que a unha encravada do irmão do tio-avô do vizinho fosse real, percebeu que teria de ir. Decidiu levantar e passar perto do RH, o sorriso estava lá e resolveu arriscar.

Faltando uma hora para sair, as mensagens começaram a pipocar em sua tela. Os 5 envolvidos começavam a pipocar na sua tela, e sua mente começava a pipocar para casa, ir ou não, ficar ou não. Queria ir, mas a encheção seria tamanha que decidiu ficar, pensou no sorriso de novo.

18h e todos estavam à espera dele. Levantou-se numa vontade imensa que fez todos murcharem. Achou-se egoísta, fiz uma brincadeira e os sorrisos reapareceram. Seguiram para o mesmo bar de todas as quintas, sentaram na mesma mesa de todas as quintas, foram servidos pelo mesmo garçom de todas as quintas e fizeram quase as mesmas piadas de todas as quintas.

Até que a menina do RH veio com mais algumas amigas e aumentaram os lugares. Até aqui não tinha pensado em ir embora, mas, de repente, quis realmente seguir em frente, principalmente quando viu que o sorriso solto da menina se engraçando a outro de outra mesa.

Não quis comer os petiscos, estava com o pensamento fixo. Minutos depois, inventou uma dor de cabeça repentina e sorriu, vendo que conseguia se desvencilhar de todos de lá. Nem mesmo os 15 reais de troco, que devia ter levado, foram empecilho para ficar.

E, como um alívio, estava fora, atravessou correndo a rua. Mal cumprimentou o porteiro da noite e desceu até o segundo subsolo. Entrou voando no carro e sorria quando saiu do prédio.

Conhecia um atalho ótimo para aquele horário e sorriu ainda mais quando percebeu que fez a coisa certa, porque todos os caminhos o levavam para casa, todos os faróis estavam verdes. Casa. Casa. Casa.

Estacionou. Enquanto o portão descia, ele abria a porta, ansioso, suando já. Mal devolveu o gracejo do pug que fazia festa a ele. Decidiu pegá-lo no colo e, recebendo lambidas no rosto, foi até a cozinha. Largou o bicho lá, que sentou.

Nem pensou, o sorriso estava ainda maior, não crendo que conseguiria. Abriu o forno e a o papelão redondo estava lá. Salivou copiosamente. Num ímpeto, puxou a forma para si. Colocou-a no tampão de vidro e abriu.

"Comi os dois últimos pedaços, irmãozinho!” – leu enquanto rangia os dentes.

 Alugou uma quitinete um mês depois. E antes de chegar a mudança, burlou uma quinta-feira para devorar os 4 últimos pedaços que deixou propositadamente para o dia seguinte.  Existem coisas que não se explicam, comer pizza fria do dia anterior é um prazer que somente quem aprecia a vida sabe que realmente não existe explicação... Sublime.
 
Claro, Sansão, o pug preto, se deliciou com as 4 beiradas que lhe restaram.

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

COMO CONQUISTAR SONHOS

O sonho do pai sempre foi ser dentista. Nunca pôde começar a tentar isso. Mas quando o filho se interessou em prestar vestibular, não deu outra, o pai, comerciante de sucesso, abraçou a causa e colocou o sonho nas mãos do filho.

Bancaria mensalidade, os cinco anos de estudo, um carro para se deslocar mais rápido e ter tempo aos livros. Bancaria até o lazer, 5 anos livres e inteiramente dedicados à odontologia.

Na primeira tentativa, ele não passou. Mas a influência com os políticos da cidade e uma compensação vultosa garantiram a vaga do menino, que nunca soube disso.

E o menino se dedicou como nunca. Além da mesada que recebia, havia os extras para cada nota máxima, engordando a conta do rapaz. Não saía, mal se divertia, vez ou outra aparecia um cinema ou um teatro.

Orgulho da mãe, troféu do pai, exemplo aos menores.

Primeiro ano sem problemas, assim como os 4 restantes. E o rapaz, aos 22 anos, se formava dentista. Choro reluzente do pai, uma festa antecipada a todos da família, quase um deus.

Noite de colação de grau. Mesmo o calor insuportável não era empecilho a todos o que lá estavam. Fotos, sorrisos, alegria. Além de tudo o que conseguiu, ainda foi eleito o paraninfo da turma.

E não tardou para ser ovacionado pelos alunos e professores, porque nem sempre alguém se formava com notas máximas em todas as matérias, em todos os semestres, em todos os 5 anos.

Ele subiu ao púlpito e falou:

- Sonhos. Nos meus 10 semestres na faculdade, fui movido por eles. – aplausos

Sonhos do meu pai e meus sonhos. Não sei o que de mais detalhado aconteceu no mundo do cinema, no mundo do teatro, no mundo em geral. Nesses 10 semestres, vivi, respirei o que hoje se encerra aqui. Viver sonhos é bom, vale a pena, sejam os seus, sejam os dos seus pais. E consegui realizar dois simultaneamente. Pai, esse diploma é pra você... – ovação

 - ...Prometa que vai enquadrá-lo e exibi-lo a todos que um dia sonharam com isso! Ponha-o bem à mostra... – retirou a bata e exibiu uma camisa xadrez, uma calça jeans surrada e colocou um boné - ...porque agora começa o meu sonho, embarco hoje à noite para Londres, para fazer meu curso de DJ!

Só a mãe e os irmãos apareceram no aeroporto 3 anos depois.

 

 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A VIA DOLOROSA DAS COMPRAS

22 de dezembro, a 2 dias para a troca de presentes, a família decidiu comprar todos num dia só. As promoções, o tempo livre e principalmente a madrugada dos shoppings proporcionaram mais do que um dia de consumo, proporcionaram uma turnê de pacotes, caixas e paciência.

Pai, mãe, as filhas adolescentes e o primo embarcaram nessa. Deixaram a zona leste e rumaram à zona sul, com a certeza de um passeio lindo, repleto de entretenimento.

A contragosto, o pai aceitou o desafio e prometeu não reclamar. Tentou adiar ao máximo e, agora, não havia saída. Teste à prova já na via principal que liga o bairro ao centro. Sábado às 8h, era como segunda, às 7h. Primeira e segunda por uns 30 minutos quase. Carro sem ar e haja garrafinha d’água dos ambulantes.

2h30 depois, conseguiram entrar no estacionamento. E tal qual guepardos à procura da presa, ficaram os cinco à procura de vaga. 20 minutos e nada. Decidiram interpelar um casal na saída das lojas ao estacionamento e os escoltaram até a vaga.

Às 11h da manhã, conseguiram se infiltrar nas ruas infladas do local. Na lista 9 itens. Respiraram fundo e se dividiram, meninas e meninos.

4 itens a eles. Saem, entram numa loja lotada. Não são atendidos. Escapam para mais duas. Itens acabaram. Tamanhos se esgotam, cores mínguam, modelos somem. Fogem para outras duas lojas. Uma compra é feita, mesmo que tenha sido a terceira opção do presente, mas é feita. 2h depois, para pra almoçar.

5 itens a elas. Saem, brigam com duas mulheres que disputavam o último par de sapatos. Não conseguem êxito. Entram em outra loja, acham a vendedora gorda e sem classe, saem. Acotovelam-se para ver uma saia. A cor não agrada. O fúcsia e o violeta estavam mais para vinho, preferem o berinjela.

2h depois, sem compra alguma, param pra almoçar.

3 itens a eles. Loja cheia, vendedores pouco instruídos. Saem. Loja vazia. Todas as quartas opções de presentes estão lá, eles sorriem e levam tudo. Menos de 1h depois do almoço, compras feitas. O pai liga para a mãe. Vão demorar. Eles decidem ver O HOBBIT, cinema vazio.

5 itens a elas. Brigam com uma vendedora que não consegue ver diferença entre creme e nude. Saem. Entram numa loja, amam as blusas, pechincham, conseguem levar uma, mas não para alguém da lisa, porque era cara da tia da vizinha.

Entram em outra loja, encontram com a vizinha, que se junta a elas e conseguem comprar um item melhor do que estava na lista, 2h depois. Enquanto tomam um sorvete, veem uma vitrine, apaixonam-se. Entram na loja, escolhem 4 itens, olham bem contra a luz, decidem levar um só. Pechincham, mas sem sucesso. Decidem não levar, não vale o preço. Seguem para uma outra loja.
 
Celular toca, o filme acabou, aconselham a ver outro. Eles comem e escolhem outro. Sessão começa, lojas cheias. Brigam com mais duas vendedoras que não entendem que uma costura muda todo o glamour de uma camisa.

Entram numa loja de maquiagens. Cheia. Encontram batons, que, mesmo não estando na lista, acabam entrando. Mas não levam porque a cor não ficaria boa. Saem. Vão para uma loja de sapatos. Amam o lugar, a vendedora e a gerente. Conseguem descontos incríveis, mas a tira de um dos sapatos estava gasta e outro par não havia, mas pegam o cartão da loja.

Filme acaba. Eles exaustos. Elas no pique. Encontram-se. O humor deles a zero e o delas a mil. Eles decidem voltar de taxi. Elas ficam. À 1h da madrugada, as três aparecem com uma coleira linda ao Furacão, o shitzu da família, e com a esperança de, naquele mesmo dia, encontrarem ao menos o presente da avó.

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O DIA QUE NÃO FUI JOHN MCENROE!

Como qualquer garoto que viveu os anos 80, cresci jogando bola na rua. Às vezes o vôlei aparecia com a geração prata, mas o futebol prevaleceu. Entretanto, no começo dos anos 90, um fato, ou melhor, um esporte inusitado começava a ganhar meu passatempo: o tênis.

Um vizinho meu apareceu com uma raquete de madeira, à John Mcenroe, e duas bolinhas. Não me lembro como, mas uma segunda raquete estava por ali. A velha rede de vôlei foi desenterrada e posta rente ao chão.

Riscamos a rua com tijolo, tal qual nos dias de “contra” no futebol. E o primeiro saque foi dado. Lembro que quando consegui rebater a bolinha foi uma adrenalina única. Uma espécie de endorfina com fogo. Os olhos vidraram e os jogos começaram a ser mais comuns.

Aos sábados domingos, os marmanjos da rua, já com suas namoradas já se tornavam menos presentes, o que deixava aos dois e a quem mais por lá estivesse dividir raquetadas e risadas. Porém a competição começava a ficar menos engraçada. E os jogos mais longos.

Um amigo de faculdade do meu irmão, certa vez apareceu aqui e viu o jogo, amou participar. Sócio da Portuguesa, disse que podíamos jogar lá. Não éramos sócios, e o bizarro tinha de ser feito. Entrávamos escondidos no porta-malas, todas as noites de terça-feira. Fizemos duplas, amigos e por lá ficávamos.

4 meses depois, apareceu um campeonato interno de duplas. A essa altura, as raquetes eram melhores, a agilidade de amadores estava fora. Os saques eram mais certeiros e potentes. Não éramos mais duplas comuns. Os olhos sempre estavam em nós. Quem diria, um adolescente suburbano num esporte de elite e se destacando.

Campeonato. Sábado. Graças à falta de organização do clube e à nossa sorte, conseguimos nos inscrever. Jogo às 13h, novembro de 1991. Sol forte. Eu e meu parceiro mais do que preparados. Uniformes novos, Gatorades nas mochilas e a confiança de um bom jogo.

A dupla adversária não era de nosso meio, treinava durante as tardes, então não a conhecíamos. Os cabelos brancos nos deixaram mais animados. Uns 50 anos cada um, não poderiam meter medo num garoto de 18 e no outro de 17. Cumprimentamo-nos. Plateia boa. Os parceiros das terças à noite estavam lá, incentivando. Saque nosso. Ace. E três bolas depois, um set a zero.

Saque deles, 4 aces, e o relato termina aqui. Foi um baile. Talvez tenha sido o calor, talvez tenha sido o nervosismo. Talvez tenha sido sorte. Mas sei que naquele dia eu saí com uma dúvida, não sei o que foi pior: se a surra que tomamos no jogo ou ter de sair fedido e cansado dentro do porta-malas daquele Fiat Prêmio branco.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A MALDIÇÃO DO PÊNALTI

A hora do pênalti é uma obra de Torquemada. É a inquisição de chuteiras. Tanto para quem bate como para quem defende. Dependendo do clima, vale uma morte, vale uma vida. Vale uma glória ou uma aposentadoria.

O jogo não era lá decisivo, mas o time da casa estava ganhando por 1 a 0, os pontos os colocariam em primeiro na tabela. Sábado quente, noite promissora. E todos que amam futebol sabem quão delicioso é curtir uma noite de sábado dormindo líder e sabendo que nenhum resultado do dia seguinte influenciará nas classificações.

Aos 42 minutos do segundo tempo, a falta foi indiscutível. O atacante entrou na área e o zagueirão, atrasado, entrou de carrinho, levando grama, a cal e a perna do cara. Talvez tenha sido o calor, talvez tenha sido a exaustão ou o fato, ninguém reclamou. Só restou ao adversário comemorar e aos da casa ficarem de mãos na cintura.

Via-se o derreter do clima ao longe. Os sorvetes tinham acabado, as bebidas também, torcedores do estádio todo só fizeram esperar. Tensão. Bola na marca, juiz apita e o goleiro defende.

Êxtase. A arquibancada vem abaixo. Mas a invasão coloca de novo a falta a ser cobrada. Dessa vez nem o calor impediu coisa alguma, empurra-empurra, confusão, mais de cinco minutos de burburinho. Juiz pra lá, juiz pra cá. E mais uma vez a cobrança seria feita.

Juiz apita. E mais uma vez o goleiro defende. Pênalti defendido é como um gol ao contrário. Êxtase. E não é que os colhões daquele árbitro eram de ferro. Invasão de novo, cobrança anulada, e dessa vez até a polícia teve de intervir. O alambrado era quase mordido. Fúria. Olhos vidrados, uma baderna instaurada. Um caos.

Mais confusão. Os olhos a um simples jogo já arrecadavam o mundo. Internet, redes sociais, imprensa. E o pior era que a regra era clara. Respeitá-las no futebol pode ser um inferno e foi. Quando a displicência impera, a seriedade tem um adversário quase que instransponível.

Guerra, socos, três expulsões e 20 minutos depois, pela terceira vez, o pênalti seria batido. Com 8 jogadores, e faltando ainda os 3 minutos para o término, se o time tomasse o gol, seria uma retranca absurda para não tomar a virada.

Ânimos menos exaltados. Atacante esperando. Bola nas mãos do goleiro, que se dirige à marca da cal. E o improvável acontece. Antes de dar a bola ao atacante, como num tiro de meta, ele mira e, num potente chute, a acerta no rosto do juiz, que cai desmaiado. Se a quarta cobrança foi feita, nunca saberemos, mas fica a filosofia do número 1 ao ver o alvo nocauteado:

- Anula o próximo também, filho da puta!

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

EU, 171

Costumo falar aos alunos que o melhor método pra se aprender algo é pela dor, o mais eficaz e o perpétuo. E não digo isso só por parecer uma dica, mas por ter vivenciado várias dores ao longo da vida.

Antes de seguir, queria passar uma regra gramatical. Você deve se lembrar da VOZ PASSIVA. A oração “EU CORTO O PÃO” na voz passiva ficaria “O PÃO É CORTADO POR MIM” – talvez tenha ajudado. Salvo com os verbos OBEDECER e DESOBEDECER, não há voz passiva quando o complemento do verbo trouxer preposição, por exemplo “EU PRECISO DE DINHEIRO”, a voz passiva estará errada.

Há 18 anos, na primeira semana de estágio, e no primeiro semestre do curso de Letras, trabalhava numa empresa de educação elaborando materiais didáticos, no setor de Língua Portuguesa. Quando o telefone toca.

Confiante atendo ao chamado, era uma mãe de um aluno de tal franquia. Ela tinha uma reclamação sobre o material didático. Corretamente, a mulher apontou um problema de voz passiva.

A oração trazia o verbo ASSISTIR, no sentido de ver, presenciar. Quando tal significado é abordado, o verbo pede a preposição A. Daí “Eu assisto Ao filme”. Logo a voz passiva presente na oração “O FILME É  ASSISTIDO POR MIM” e no livro estava errada.

Com exatos 3 meses de faculdade, fui soberbo e ignorante ao discordar da mulher, dizendo que tal oração era possível. Ela educadamente discordou, endossando a regra correta. E eu, mais uma vez, confiante no meu futuro título e estágio, disse que ela estava errada.

Mais uma vez, sem perder qualquer compostura, ela soltou para mim: “Menino (isso dói até hoje), por favor, passe a ligação para alguém que entenda (isso dói mais ainda)”. Tomado de ódio, passei a ligação para minha chefe e fui atrás da minha justificativa em livros de gramática.

Enquanto as mulheres conversavam, eu comia livros e livros. A empáfia daquela mulher teria de descer a seco. E minha chefe me defendendo até. E percebi que não era o meu ponto de vista que ela defendia, mas o que eu faria na empresa: livros didáticos.

Meu coração quase gelou, assim que me deparei com a regra defendida pela mãe. Sim, ela estava certa, e eu, errado. Naquele momento, as palavras do meu pai me vieram à mente: “Educação abre portas!”.  E me lembrei que, mesmo errado, ela não havia me destratado. E que a mim só cabia uma atitude.

Assim que pude, fiz um sinal à minha chefe para passar a ligação de volta a mim. Ela o fez e eu, vermelho de vergonha, disse que a mãe estava certa e que aceitasse meus pedidos de desculpa por não ter agido de modo correto.

Ela aceitou educadamente minhas desculpas e aconselhou ficar focado nos estudos. Ao desligar o telefone, olhei para minha chefe, que chorava copiosamente, dizendo que eu – um menino de 22 anos – teria um futuro brilhante, engolindo meu orgulho.

O tapa que levei aquele dia, hoje me é doce, mas engolir a seco minha própria empáfia, minha própria soberba, foi um dos azedos mais eficazes à minha vida.  

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A CONTRAMÃO

O cara tinha essa mania irritante de acumular pessoas. Sim, cativava-as, mimava-as e depois não sabia o que fazer com elas. Tinha a certeza de que cada uma possuía um prazo de validade. Aprendeu que todas dão defeito, umas mais cedo, outras depois do almoço, mas dão.

Sabia que com ela seria igual, antes do anoitecer ou numa tarde de outono, ele olharia fundo nos olhos dela e sentiria que o melhor a fazer era seguir em frente e procurar novas conversas ou aventuras.

Era uma tarde quente, ele a esperava perto de uma esquina, debaixo de uma árvore, pisando a pouca sombra daquelas folhas. Quando sentiu que dessa vez seria diferente. Sim. Não conseguiu explicar. Uma espécie de alegria tenra e apaziguadora invadia-o por completo.

De repente, as sombras não precisavam mais estar ali. Decidiu encarar a luz forte do sol, porque era de calor que ele precisava, era luz que ele pedia, era de outra sombra ao lado da própria.

Percebeu que algo estava destoando do comum, que o incomum reinava firme e decisivo. Viu música na barulheira da quadra a distância, enxergou mais o colorido do céu e precisou os tons das buzinas.

De repente, ele soube que era ela, sim, ela. Sempre soube que nunca sentiria isso e que, se sentisse, poderia ser o aviso do eterno. Soube que poderia deitar a cabeça no ombro dela e ser para sempre. Soube que aqueles olhos sorriam a cada minuto. Entendeu todas as dicas que ela passou a ele sem tabelas ou divididas, vieram limpas e num campo macio.

Tentou ensaiar um pequeno discurso, soube que um dia poderia usá-lo, mas nunca que fosse naquele dia, naquela tarde e com ela. Sim, ela.

Relaxou e deixou que o improviso e o coração falassem, porque, se pudesse cantar, era isso que deveria fazer.

O celular toca, era ela. Momento crucial, deveria estar perto, ele atende. Ele sorri, ele a ouve, e ouve, e ouve, e ouve. O sorriso se apaga. Ele guarda o celular no bolso. Entra na padaria e pede um café sem açúcar. Ele o bebe como se nada houvesse. Paga e sai imponente depois de tropeçar na própria sombra...

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

IRRETOCÁVEL

A história sempre é contada pelos vencedores, pelos que ganham os desafios mais gostosos, mais saborosos. E é fácil de antever quem será um vencedor, quem será um perdedor.

Vejamos de perto a vida do rapaz. Aos 6 anos, já era uma assumidade entre todos os alunos minúsculos de lá. Foi de causar inveja o moleque, no dia da formatura, lendo a mensagem de fim de ano, para pais e demais analfabetos daquela plateia.

Chegava à primeira série despontando como um diferencial e tanto. O que muitos demoravam pra saber, ele já respondia. Um modelo, um mimo aos professores. Enveredou-se na carreira da esgrima. Sim. Enquanto todos corriam atabalhoadamente atrás de uma bola, ficava o moleque de canto, com sua espada.

Era costumeira a vontade de furar a bola dos plebeus, que gritavam e incomodavam a concentração quase mediúnica do rapaz, que se formou com louvor no ensino médio e ingressou na faculdade de Administração, seguindo os passos do pai, empresário único no ramo de açougues.

E foi o que aconteceu. Ainda no segundo ano de curso, já era o diretor geral da rede de mais de 35 estabelecimentos. Falava inglês e espanhol e começou a se arriscar no russo e no mandarim. Conheceu Solange, uma estudante de moda que queria ser atriz, mas não tinha memória ou talento para tal.

Linda e limítrofe, parceria perfeita. Não entendia de negócios, não queria saber. Encontrara a mulher ideal pra gastar dinheiro, ter filhos e fotos invejáveis nas redes sociais. E foi o que acontecia. De paris a Nova Iorque, de Roma a Grécia – as fotos eram únicas, sem contar um fotógrafo profissional que os acompanhava, numa espécie de Caras privado.

E quase enlouqueceram, quando descobriram que haveria um encontro dos alunos do século passado. Claro! Melhor que as fotos, eram ver ao vivo o luxo, a sofisticação do casal, com dois filhos prodígios e tudo em cima.

Abriram a casa de campo deles, colocaram 5 vans à disposição de todos. E as 50 pessoas apareceram encantadas com o altruísmo saudosista do rapaz, empresário de renome, orador, encantador, que se vestia de Papai Noel em dezembro e distribuía comida e presentes aos carentes, mesmo que por dez minutos e dez fotos.

Pai de família zeloso, homem eminente.

Estava a mil milhas do Rodolfo, colega de sala, que devia ao banco. Do Bruno, mágico de festas infantis, que pagava pensão a duas ex-esposas e não via os filhos há meses. Da Claudia, que acabara de sair da reabilitação. Até do talentoso Marcio, que prosperou por anos na construção civil, mas perdeu tudo no jogo.

Dos gêmeos Rubens e Ricardo, que abriram um restaurante de bairro e tinham sido assaltados duas vezes naquele semestre. Da Margarida, divorciada, professora, que quase não fora ao encontro por causa das provas para serem corrigidas.  

Da Silvinha, sim, a namoradinha da sétima série, que engordara tanto por causa de um hipertireoidismo, mas decidiu encarar o passado. A esposa do rapaz sorriu ao vê-la. Bem diferente do Jonas, carreteiro de primeira. Os únicos ausentes foram a Melinda, que seguia uma carreira brilhante nos palcos da Europa e do Ademir, senador. Mesmo que ambos estivessem livres naquele dia, não conseguiram confirmação na festa.

O discurso foi lindo, o almoço de primeira, o fotógrafo estava lá a toda. Só clicava a família, a casa e os mais bem vestidos. Tudo inesquecível. Até a Margarida, já meio bêbada falar que viu o jardineiro, um alagoano de quase dois metros de altura, enrabar o anfitrião perto da casa da árvore.

Mas quem acreditaria numa bêbada frustrada, que endossaria que a história sempre é contada pelos vencedores, pelos que ganham os desafios mais gostosos, mais saborosos.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

SANGUE DE QUAL SANGUE?


Quando Helena ficou sabendo que era adotada, a primeira reação que teve foi de nojo dos pais biológicos e de gratidão e amor eternos aos adotivos. Ela tinha 12 anos e conseguiu ratificar aquela dúvida que sempre pairava nas noites de insônia, nas fotos e nos comentários.

Trancou a informação no rancor da alma e decidiu jogar a chave fora. Mergulhou nos estudos e no seu mundo. A mãe amarguradamente se arrependeu de ter aberto a boca, sempre preferiu a segurança da mentira à instabilidade do real. Soube que deveria ter seguido o instinto.

O pai não, vivia dizendo que o comportamento da menina era da idade e não da verdade. Ao menos se escondia nos livros, um mundo mais seguro e rico que o detrás da porta.

Anos se passaram, e, aos 20, naquela manhã fria, ela abriu a porta da cozinha e disse: “quero conhecê-los de perto!”.

E o medo aparecia. O choro da mãe foi quase um pedido de perdão pelo pecado alheio. O pai abraçava a esposa como um acalento necessário e previsto. Era uma possibilidade, aliás metade de duas escolhas. Por 20 anos o não prevaleceu, agora chegava a hora do sim.

O pai abriu a gaveta que nunca foi aberta, retirou a pasta que nunca mais foi mexida e pegou os nomes que já estavam apagados em sua memória. Entregou-os à menina, que, serenamente, sorriu, deu um beijo nos dois e saiu.

Uma rápida consulta pela internet e descobriu dois casais possíveis, mesmo tendo a certeza de saber já quem corria seus traços e suas veias. Chamou o pai, porque a mãe tomara um calmante fortíssimo. Ele comprovou apenas com um menear de cabeça.

A moça, então, se identificou aos dois, que, em menos de meia hora responderam de modo solícito e cordial. Um encontro marcado para o fim de semana. Ela iria sozinha, assim como os dois do outro lado.

Não eram os porquês, não eram as justificativas, era apenas a curiosidade, pois o sangue se reconhece e se renova com o tempo. E era de sangue que ela falava, apenas a parte física.

Naquele sábado, os pais decidiram sair cedo e deixaram a filha com suas decisões. A mãe chorou o dia todo, o pai a consolou o dia todo. Preferiram sumir e tentar esquecer como seria aquela tarde, como seria aquele encontro.

Tentaram passar o maior tempo possível longe de casa. Decidiram voltar depois das 20h, quando, provavelmente, a filha já estaria de volta. E foi assim que aconteceu.

Eles entraram e viram que ela estava no quarto, escutando aquela canção que a deixava feliz, e a mãe chorou ainda mais. Os planos fracassaram, tantos anos de dedicação e formação esvaíam com apenas uma tarde.
 
O pai bateu à porta. A menina, com a voz agradável, convidou-o a entrar. Ela estava no banheiro tentando retirar as lentes de contato. O pai parou em frente a ela, que sorriu. Ele sorriu de volta, e antes que perguntasse como foi tudo, ela pediu para que ele sentasse em frente ao notebook e olhasse para tela.

Ele assim o fez, sentou. A menina, lá mesmo do banheiro pediu para que ele apertasse o “agora não” na rede social. O pai sorriu, e a música nem tinha ainda chegando ao refrão...
 
 

sábado, 2 de novembro de 2013

AS ÚLTIMAS FÉRIAS DE UM MENINO


Férias na casa da avó eram inesquecíveis. Sempre foram. Desde os 8 anos. Bolinho de chuva, mimos, dormir na rede, uma fazenda antiquada e aconchegante. Casa na árvore, colchão de molas e lareira.

Mas naquele ano algo estava diferente. As travessas de bolinhos aumentaram, os pés já não cabiam mais na cama nem ele mais no colo dela e mal conseguia ficar em pé na casa da árvore. Os 14 anos eram diferentes, o horário do TV trazia outra programação.

As caminhadas ficavam mais longas, o silêncio o seguia como sombra. Outras trilhas apareceram e levaram a itinerários bem mais coloridos. Nunca soube que havia uma cachoeira perto de lá. Não soube pensar se aparecera de um ano pra cá ou se seus olhos procuravam algo que nunca olhou.

Acreditou que estava no meio da divagação quando ela apareceu. Teve apenas tempo de se esconder. Viu que estava nua porque as roupas se amontoavam numa pedra. Sentiu vontade de entrar também na água, de perguntar seu nome. Mas preferiu a segurança.

Ficou parado lá vendo cada braçada, cada mergulho. Era linda. Sentiu que a amou naquele momento, porque nunca vira sol iluminar algo tão bonito. Sorriu.

Mexia apenas o olhar e descobriu algo mais doce que as delícias que saíam do forno da sua avó. E teve a certeza disso quando ela saiu da água...

Mesmo que não a tenha seguido, mesmo que no ano seguinte ela não tenha voltado a nadar e mesmo que não teve a certeza se realmente ela existiu, nunca mais seria diferente, inesquecível, porque não se pode esquecer a melhor redação que fez sobre as férias que passou.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O ODIOSO HÁBITO DE SE ACOSTUMAR

Sabe-se lá quando foi que o hábito começou. O fato é que todo domingo era dia de comer na sogra. Ninguém perguntou, ninguém desistiu ou convidou. A verdade é que chuva ou sol, frio ou calor, estavam lá os 4 filhos, as 4 noras e os 6 netos.

Pode-se chamar de ritual, se olharmos a vida das 16 pessoas envolvidas, podemos resumir assim: preparar o almoço, arrumar a mesa, varrer a frente, preparar as crianças e seguir para a velha casa no bairro decadente.

Cumprimentar os vizinhos, sorrir, porque se sorri todo domingo a quem estiver por ali. Ver o mesmo pipoqueiro na mesma esquina da mesma rua da mesma casa. Parar na mesma ordem de chegada os carros. E olha que já era uma revolução se alguém burlasse o protocolo.

Os assuntos variavam porque alguém no mundo tinha de mudar o rumo das coisas. Mas fosse como fosse. Domingo era sempre assim e assim foi por 10 anos seguidos até a morte do avô, que aconteceu numa sexta, o que não impediu de o almoço acontecer dois dias depois.

Anos depois, foi a vez da avó, estopim de toda a comilança dominical, pegar um itinerário diferente. Não se atentaram, mas pararam naquela manhã em frente da casa fechada. Não havia almoço nem calçada limpa e talvez até o pipoqueiro tivesse se perdido ao longo desse período.

E cada família decidiu tomar caminho contrário. Os da zona sul seguiram pra lá e os da zona norte nortearam, quem tinha de ficar no centro ficou e quem não também sumiu de lá. E já que um novo ritual se formou, assim se fez. Foi a última vez que se viram ou se falaram e perceberam que só se relacionaram porque nunca se perguntaram o motivo.

Mas parece que dois dos casais se encontraram numa fila de cinema, e se realmente fossem eles, não haveria assunto, porque o pipoqueiro - que na esquina ficava há 20 anos - não era o mesmo que estava por ali.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O VOLÚVEL

Tinha na segunda-feira aquele seminário importantíssimo para apresentar ao chefe. Promoção iminente. Não dormia direito há dias, mal comia, chegava às 6h e saía às 22h, preparando slides e tabelas e números.

Pela secretária, soube que era o preferido, e que se na apresentação fosse tudo bem, 75% a mais no salário e um cargo de confiança há muito merecido. Na quinta-feira, sentiu calafrios, um arrepio nervoso e uma irritação na garganta.

Na sexta pela manhã, estava fanho, a voz quase não saía. Comprou um analgésico e tocou a cara em vitaminas C. Não tinha como ficar doente, não agora. O chefe olhou para o rosto dele:

- A apresentação está pronta?

Ele assentiu com a cabeça.

- Então suma daqui, quero você ótimo para segunda-feira!

 Uma bênção, eram 11h da manhã, e ele estava debaixo das cobertas. A esposa preparou-lhe uma sopa quente de lentilhas, que foi devorada com a promessa de o marido largar o notebook.

A febre cedeu. Mas a garganta estava estragada, o nariz entupido. Sentia-se melhor no sábado. Ainda assim não estava 100%. Domingo pela manhã, sim, era outro, decidiu caminhar e foi na volta que teve a reviravolta.

Após o almoço, olhos, testa e nariz queimavam: sinusite. A nuca doendo, a cabeça estourando. E a ansiedade do rapaz nas alturas. Eram 15h, e havia pouco tempo à apresentação.

A esposa seguiu desesperada à farmácia, trouxe dois remédios, que foram devorados. Para a dor na nuca, tomou mais um e mais duas doses de um outro para a dor de cabeça.

4 horas depois, era outro. O mundo conspirava para a sua promoção. Teve medo de se sentir bem naquele momento apenas e de, dali 12 horas, tudo voltar. Não podia transpor o horário dos medicamentos.

Achou que aquilo pudesse ser uma crise de ansiedade. Sim. Só podia ser, muita pressão, a promoção que tanto desejava. Sabia que a esposa tomava uns tarjas pretas e foi revirar o armário do banheiro.

Pegou logo uns dois e os meteu pra baixo. Tudo daria certo. Eram 8h30, e nada do cara. 9h, 10h. E a reunião passou. Lázaro só levantou às 11h30. Com o pior gosto do fracasso na boca, mas com a melhor noite de sono da sua vida.

Ele pediu demissão no dia seguinte, porque desde sua entrada nessa empresa, nunca havia tido uma noite de sono tão maravilhosa como aquela. O rapaz se arrependeria dias depois, quando o efeito do Lexotan sumira. Mas o chefe não responde às suas ligações.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A SÁBIA E SORTUDA ARTE DE SER JUSTO

O atraso para a consulta poderia ser a única preocupação da menina naquela manhã, que pegou escondido o carro do pai e tinha a pressa de seguir com a agenda cheia daquele dia.

Duas voltas no quarteirão e nada de vaga, e o nervosismo falando alto. Até que um espaço apareceu e, na ânsia de pegá-lo, o que acabou pegando foi o retrovisor dela no de outro carro.

Pronto, o espelho dela espatifou-se, já o do cara, além do espelho, todo o retrovisor veio ao chão. O nervosismo deu lugar ao pânico e ao desespero. Como explicar ao pai intransigente que a falta de atenção, porque só ela é a causadora de tudo, disse presente e espalhou cacos de vidro por todo o banco do carona.

A sorte, o pai voltaria de viagem apenas na manhã seguinte. O azar, o que sobrou disso. Mal discutiu com o dono do carro. Abriu a carteira, deu cem reais a ele e o número do celular:

- Se ficar mais caro, me avise, tenho consulta e estou atrasada!

Entrou tremendo no consultório, saiu tremendo dele e cancelou todas as coisas para arrumar o espelho. Na primeira loja especializada, não encontrou o que desejava. Na segunda, havia apenas um modelo similar.

Na terceira, encontrou tudo, mas os 500 reais que ofereceram serviu apenas para comprovar que o preconceito a ele era imenso. A tarde avançava e nada acontecia. Ligou para a fábrica e conseguiria um idêntico, mas para três dias.

Implorou à atendente, que nada pôde fazer, apenas prometeu tentar algo e, se conseguisse, entraria em contato. O modelo 2000 era o xodó do pai, que tinha no carro mais do que carinho, tinha sua própria vida.

Conseguiu com um amigo, um endereço no extremo leste da capital, duas horas até chegar. Chegou e viu que era nada parecido, mas muito igual, as coisas não se parecem quando sabemos a verdade e as coisas são iguais quando não notamos.

E assim, com uma diferença absurda, ainda assim, com um espelho nada similar, ainda assim, ela voltou exausta e resignada. Esperaria pelo pai e contaria tudo pela manhã, assim que ele chegasse. Não jantou, dormiu e não percebeu quando a porta se abriu. Só percebeu quando a porta se fechou, deu um salto da cama e quase se apavorou quando viu que as chaves do carro não estavam lá.

Não era justo. A intenção foi a de falar antes. Não poderia explicar que falaria antes. Seria um sermão e seria naquele momento, quando percebeu, meia hora depois, que o elevador estava de volta e o apito avisava que algo passara pela porta. Era o pai, desolado. Cabisbaixo, ele se sentou no sofá...

- Pai, precisamos conversar, eu...

- Filha... Cheguei antes e iria ao trabalho, mas pela maldita desatenção, eu não me perdoo por isso, estourei o retrovisor do carona na pilastra do estacionamento. Tudo foi pro chão, tudo, não sobrou nada... Ai, que mau agouro. Ficamos eu e o seu Genézio recolhendo do chão os destroços, tudo pro lixo. O mais engraçado foi não termos achado o espelho... Mas diga, filhota, o que você tem pra me dizer...

- Nada não, pai, nada não...

 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

MILAGRES DO ROCK'N'ROLL

Rubens Sanches
Existem histórias que de tão bizarras não parecem ser verdadeiras. Mas o simples fato de a bizarrice ser intensa não poderia ficar só para algumas pessoas. Anos 80, o menino havia ganhado um violão antigo, som perfeito, da vizinha, com a promessa de bom uso.

O moleque, com seus 8 anos, era menor que o instrumento, agarrou-se a ele de tal maneira que o levava a todos os lados. O problema era óbvio e físico, se a formiga consegue carregar duas vezes ou mais seu próprio peso, o garoto não conseguiria endossar tal proeza no seu sobe-e-desce.

Saía por aí batendo o violão em todos os batentes e paredes pela casa. Não pelo desleixo, mas pelo simples fato de física. O pai, músico pretenso e dedicado nos 4 acordes que sabia de cor e comovido pela situação, tinha de deixar ileso o instrumento e proibiu o moleque de maltratá-lo daquele jeito.

Dessa forma, apenas com o consentimento dele, o primogênito deveria brincar com as cordas. Quando podia, era o pai que o pegava e tentava, inutilmente, tocar a introdução de Stairway to heaven – mas o som que saía de lá fazia o instrumento berrar mais que as batidas que o menino dava com ele.

Atento, muito atento, o filho ficava ouvindo aquela melodia linda ser horrivelmente interpretada pelo chefe e ficou fascinado por ela. Adorava escutar a música vezes e vezes, mesmo que tivesse de ver o esforçado pai suar a cada tentativa.

E como criança é criança, sem a monitoria alheia, o moleque pegava o instrumento para devorá-lo, quase que diariamente. E foi numa briga com a irmã que o mais velho foi entregue. A menina pôs a cabeça do irmão numa bandeja dourada e entregou-a linda e sôfrega ao pai, que soube que diariamente o violão era tocado pelas pequenas mãos do menino.

- E você faz o que com ele?

- Eu toco...

- Toca o quê?

- A música que você vem tentando tocar.

Não podia ser, o pai tinha que ouvir.

- Traga o violão aqui e me mostre.

E dessa vez ele veio com cuidado, porque a música e o instrumento eram já o DNA do menino, que pôs o violão nas pernas e começou a tocar uma das melodias mais lindas do universo. Não podia ser, mas era. A bronca não veio, veio um milagre que se confirma até hoje, no estupendo músico em que Rubens Sanches se tornou.

Existem histórias que de tão bizarras não parecem ser verdadeiras. Mas o simples fato de a bizarrice ser intensa não poderia ficar só para algumas pessoas. Que o mundo saiba mais quem é o guitarrista virtuose, e que também saiba: até hoje o pai não conseguiu tocar o que tentava há 30 anos.

 

 

 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A PROMESSA...

Muita coisa aconteceu desde a única visita do rapaz à Basilicata, Itália. Quando esteve por lá, ficou embasbacado com a região e mais ainda ao provar o Anglicino del Taburno, vinho encorpado, servido com uma bela peça de cabrito e batatas. Apaixonou-se pelos sabores. Quis porque quis levar uma garrafa da bebida, mas com a condição de ser consumido uma década depois, pois a suavidade e o sabor seriam como os daquele copo.

 Embriagado de amor, e isso basta para loucuras e comprovações irracionais, ele aceitou o desafio e trouxe para o Brasil, em 2003, parte daquela viagem maravilhosa e se desafiou a voltar a provar dez anos depois o mesmo sabor que marcou sua vida.

E o dia chegava. Naquele domingo, não pensou em mais nada a não ser abrir aquela garrafa empoeirada, acompanhada de um farto pedaço de queijo parmesão e pão italiano. sim, logo cedo, seria o desjejum mais delicioso nos últimos tempos.

Dispôs o queijo à direita, a faca à esquerda, o pão mais atrás, a taça no centro e o vinho na mão. Acompanhou delicadamente o levar até a mesa e sorriu ao vê-lo ali, finalmente, depois de exatos 3652 dias, Basilicata estaria entre seus lábios.

Pegou o saca-rolhas e, antes mesmo de encostar na garrafa, lembrou-se de todos os momentos que teve para beber e não o fez. Primeiro foi quando seu filho nasceu, um ano depois da viagem, estava prestes a abrir, mas preferiu manter a palavra.

6 meses depois, a conquista do campeonato inédito do seu time pedia também algo diferente. E ele viu e reviu os lances da final bebendo um porto mesmo. Ah, mas a promoção, 3 anos depois seria o motivo ideal. Nada, nem os 70% a mais no salário seduziram o rapaz.

E a vinda das gêmeas, as tão sonhadas gêmeas, dois anos mais tarde, coincidindo com a primeira apresentação do moleque na escola, a alegria era tão maravilhosa, tão especial, e era dezembro, tudo pedia um sabor diferente. Não.

Um ano depois, quando as meninas começaram a andar e a falar no mesmo dia seria o momento mágico para brindar tantas conquistas. E o carrão zero, um ano e meio mais tarde então... Quis esquecer as mágoas com a morte do pai, quando o amigo irmão o escutou chorando por horas, seis meses após o carro.

E já fazia um ano que, quase todos os dias teve vontade de beber para esquecer as brigas com a esposa. As ameaças de separação e finalmente o dia que ela levou o moleque de 9 e as gêmeas de quase 5 para casa dos sogros.

Fazia 4 meses que estava só naquele apartamento e finalmente poderia saborear aquele vinho. Mas ao abrir, ele pensou, ele olhou para tudo, escutou o silêncio pesado de sua vida. Levantou-se da mesa e levou tudo consigo. Ficou quieto tomando uma média com um chapeado na padaria, enquanto dois mendigos famintos devoravam tudo. A garrafa do Anglicino del Taburno foi quebrada e furou o pneu daquele Monza 85.