E
as piores estão camufladas em anjos. O Piu-Piu, por exemplo, é um passarinho
fêmeo do mal. E ela era linda, uma beleza angelical, quase puritana. Almoçavam
todos os dias no mesmo restaurante natureba, e um dia se viram. Era perfeita. Eles
se olharam, na seguinte, um cumprimento, na terceira, um sorriso, um
cumprimento e uma refeição.
E
naquela noite de sexta, eles saíram. Um beijo. No sábado, mais beijos e o motel
no domingo à tarde. Passaram a semana não apenas almoçando, foram happy-hours
deliciosos em cafés, pubs e um teatro na sexta à noite. Mede-se o compromisso
com alguém pelos compromissos que se tem com o par. Cinema e teatro é namoro
iminente. Ela não apareceu no almoço de sexta, mas a peça, uma comédia stand up badaladíssima e cara, porque
ela valia a pena.
Ele
a achou esquisita, meio seca, ao telefone. Mesmo achando que seria um problema
no trabalho, decidiu não arriscar. Achou mais estranho ainda quando sugeriu
cancelar o passeio: “Desnecessário, né?!” – disse ela.
Preferiu
não pensar, mas teve quase a certeza que ela poderia ter começado a dar
defeito. Antes a certeza tivesse sido levada a sério. Naquela noite, ele chegou
no horário combinado, ela entrou e não o beijou, entrou xingando o mundo,
chefe, companheiros de trabalho etc. Ele sugeriu mudar o programa.
“Já
disse que é desnecessário, você é surdo ou o quê? Além do mais, essa peça é
cara e tenho que fazer inveja às meninas do trabalho. Ninguém conseguiu comprar.
Se não fosse por mim...
Silêncio.
Ele havia sugerido, ele havia comprado. Mas sempre a primeira briga, anote,
sempre a primeira briga um se cala. Se esse um se cala pra sempre, pronto, a
equitação diz “presente”. E a caluda situação se deu até a chegada do teatro.
Ele tentou duas conversas, pôs a mão na perna dela, todos os indícios para que
o pedido de desculpas aparecesse. Mas nada.
“Tudo
lotado, que inferno! Para aqui, eu vou descendo e você estaciona o carro e veja
se não demora, não quero ficar sozinha aqui esperando”
Fato,
Deus mostra o caminho, sim, Ele mostra, mas o nosso GPS é falho demais. O
desconforto, a decepção e o gosto de ingratidão são mais amargos que uma rúcula
podre – pleonasmo aqui. Em 10 minutos
estava de volta. “Que demora! Lerdeza!”.
Entraram
e havia duas senhoras na primeira fileira ocupando o lugar deles. Ele tentou se
adiantar, entretanto... “As senhoras estão cegas ou o quê? Inferno! Devem ser
surdas também para pegar a primeira fileira, não escutam?! Esses são os nossos
lugares!”. O rapaz educadamente pediu apenas que elas pulassem duas cadeiras ao
lado e pronto.
Elas
se levantaram com dificuldade, sob olhares furiosos de quem presenciou a cena.
E quem acompanha um mal-educado é como uma contaminação, você torna parte dele.
Para
muitos, o espetáculo já havia começado. Ele engoliu seco, quis mandá-la à
merda, porém preferiu a educação. Mesmo que os olhares de pena e de indignação
o encorajassem a isso, ela era linda demais para uma atitude premeditada.
E
já se passavam mais de quinze minutos de espetáculo, e todas as piadas não
foram de seu agrado. A cada uma, ela se virava ao rapaz e comentava que era
ridículo da parte dele rir de algo tão inútil. E tinha virado honra, ele ria de
tudo, propositadamente. Ela bufava.
E
o armagedon foi quando a piada foi sobre mulheres. Campo minado. E pioraria,
quando ele desceu do palco e pediu luz para conversar com algumas da plateia. E
se Deus existisse, ele deveria desviar o comediante deles. E ele rezou, e ele
se aproximando, e ele rezou, e ele se aproximando.
“Você,
bela moça! Mas que cara mais sisuda, luz aqui pra mim, por favor! Nome?”-“Marília...”.
“Nome lindo, nome da minha avó e...” – “Nem tudo é perfeito, não é?”- “Marília,
sei que atrás dessa cara sisuda deve ter um motivo, uma unha quebrada, uma
meia-calça desfiada, um...”
“Um
idiota tentando fazer papel de adivinho!” – plateia em silêncio, e o rapaz se
escondendo no colo das velhinhas: “Mas por que tanta agressão?”
“Tente
fazer uma piada inteligente ao menos! – alguns vaiaram, mas o rapaz era ótimo. “Piada
inteligente?” – “Sim, piada inteligente, imbecil!” – “Pra quê, se você não vai
entender!” – o público veio abaixo, o rapaz segurou o riso, as velhinhas
principalmente, que não viram de onde o tapa veio. Sim, ela o esbofeteou e
berrou ao rapaz: “ Vamos agora!!!”
E
saiu. Sob vaias e aplausos. O rapaz ficou sentado, enquanto os seguranças a
pegavam pelo braço. A luz nele, o comediante ainda com a mão no rosto disse: “Se
você for com ela, juro que eu esmurro você!”.
E
o rapaz se sentou e continuou só, rindo o restante do espetáculo, até descobriu
que as velhinhas estavam na rede social, e amou ver as fotos com elas sob a
legenda: O DIA QUE O LOBO TROCOU A CHAPEUZINHO VERMELHO MÁ PELAS VOVÓS.
Muito engraçado.
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