sábado, 20 de outubro de 2012

A SEXTA DO SARGENTO PIMENTA

Nunca foi repreendida, sempre educada, exemplo de filha. Dominava o português, o inglês, o espanhol e o francês. Tocava piano desde os 10. Nunca pediu mesada, mas a tinha há 10 anos. Notas impecáveis. Sorridente, centrada. Odiava redes sociais, lia desesperadamente.

Amava cinema, amava teatro, rúcula e frutas. Frituras em festas, saía muito, gastava nada. Poucos amigos. Invejada, desejada, por pais, sogros e filhos. Ainda assim não tinha inimigos. Sentava no fundo do cursinho, mal perguntava, mal falava. Pele muito branca, não se expunha ao sol.

Amava Beatles e Mozart. Amava pintura. Não pintava. Fã de Quino, de Camus, de Eça. Odiava Chaves, desprezava E.L. James, mas se excitou com duas páginas.

Não reclamava. Não chorava nem surtava. Não tinha cólicas menstruais. Nunca beijou ou algo assim. Viu três novelas na vida, conheceu várias igrejas e rezou uma vez. Odiava praia, amava cães, mas tinha um gato. Ganhou aos 18 anos um passaporte de presente, preferiu ao carro.

Fazia as unhas em casa. Molhava morangos no leite condensado e não dava ao gato. Jantava com os pais todas as sextas à noite. Passou na primeira fase da Fuvest. Passou na segunda fase da Fuvest.

Única. Perfeita. Dez anos de mesada em uma poupança, 4 idiomas saltando entre os dentes. Tanto dinheiro assim, tantas palavras assim. Naquela manhã ela não se levantou. Porque há dez horas embarcara num voo non stop a Londres para nunca mais voltar. Mas o gato ficou...

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