quinta-feira, 11 de junho de 2015

QUEM VOCÊ SATISFAZ?

Talvez nunca se saiba qual o exato momento que passamos a nos satisfazer e deixamos de satisfazer o outro. Encontrar a medida exata entre a cobrança salutar e a autopunição nem sempre traz o X marcando o local. Fato é que desde sempre, nossas satisfações esbarram em nossos pais e mães. Tirar um sorriso deles, daqueles que nos enchem um dia todo, uma vida, é algo muitas vezes inatingível.

E o menino estava no quintal, aos 6 anos, treinando chutes enquanto o pai defendia. "Mais forte! Com efeito! Menos força! Esta mal! Concentração! Concentração". E foram horas e tardes não conseguindo um sim ideal.

De tanto não ouvir o que queria, decidiu pendurar as chuteiras e partiu para a música. Quando escutou Beatles pela primeira vez, viu-se em Paul, George, Ringo e John. Quis aprender a trocar notas e trazer a música para mais perto dele e da família. O pai amava os 4, uma fácil ponte para aquele sim ideal.

Aos 9, quando conseguiu mudar de um ré para um sol sem arranhar a marcha, viu-se pronto. Ensaiou por dias I WANNA HOLD YOUR HAND. Fez dos ouvidos dos irmãos e da mãe uma porta à maldição, à repetição exaustiva, porém sabia que teria aplausos.

Naquele sábado à tarde, a família se reuniu. A mãe preparou a sala, pôs o banquinho e o violão, anunciou o pop star sob aplausos. O menino agradeceu e, pela enésima vez naquele mês, embalou uma melodia redonda, bruta, mas redonda. Ao término, suando, com a letra decorada e agudos ousados, o acorde final foi embalado pelas palmas. Foi a melhor apresentação entre todas as mil. 

Seus olhos buscaram os do pai, que não expressava o mesmo entusiasmo. Suspirou e soltou um "Quando você quiser se arriscar nos agudos, precisa respirar melhor". O garoto mal olhou para os demais. Mesmo odiando escutar a melodia, todos prefeririam escutá-la mais uma vez a terem de presenciar aquilo.

Não precisamos adivinhar que o menino largou a música e partiu para uma promissora carreira na mecatrônica. Aos 15 anos, numa feira de ciências, levou seu robô para final. Os olhares aguçados já consagravam, porém a bateria da invenção acabou bem na apresentação final e todos acompanharam o foguete da menina subir alto.

O pai não teve dúvidas: "Quando eu disse para você sempre ter uma bateria extra, deveria ter me dado mais crédito". O futuro gênio preferiu largar seu robô no fundo da baú. 

Talvez tenha sido no primeiro ano de Direito, quando se deparou com a pintura, e decidiu registrar o sonho do pai, a Monalisa. Cresceu ouvindo que ele os levaria ao Louvre e todos veriam que a moça os acompanharia com os olhos onde quer que eles estivessem. O filho a tinha na mente e fez um trabalho espetacular.

Nos 60 anos do pai, ante todos, apareceu com aquele quadro para ilustrar o escritório. Quando o pacote foi aberto, um sonoro e uníssono "ó" ecoou pelos 50 metros da cozinha. "Você não percebeu que o polegar direito aparece sutilmente no original, né? Aqui você amputou o dedo dela".

Talvez tenha sido a gota final num copo cheio de amargura e cansado. Mas para algo a pintura serviu, o rapaz largou as leis e assumiu de vez os desenhos e as agulhas e começou a fazer fama tatuando realismos e perfeições nos corpos de todo o país. Sua reputação impecável ganhou nome e foi convidado a seguir para NY, onde, depois de 3 anos, abriu o próprio estúdio.

E foi durante uma entrevista à CNN que a irmã aparecia em seu celular. Ele teve de interromper e ouvir que o pai sofrera um infarto e seu quadro era muito ruim. Ela estava ao lado do velho, que pediu, implorou pra falar com o caçula. Burlaram os médicos e conseguiram a ligação internacional.

Teve a certeza de que a voz embargaria logo após desligar e não soube se conseguiria se recompor para a entrevista. Quieto, esperou e ouviu de uma voz cansada: "Você sempre foi bom em tudo. Tenho orgulho de você, meu filho". Talvez o médico tenha chegado após isso, talvez a ligação tenha realmente caído. O silêncio se fez.

O artista voltou para a entrevista. A repórter retomou assim que ele deu o aval e, depois de uma breve teoria, endossando o êxito do brasileiro, ela emendou um clichê perguntando sobre qual era o seu segredo de sucesso. Ele sorriu, dizendo: "Meus próprios sins". Não, ele não chorou nem voltou ao Brasil para o enterro do pai, estava devorando um juicy lucy em East Village naquela noite de verão.

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