Dizem que as brigas temperam o relacionamento. Mas qual tempero? Ainda que o cara tenha chegado tarde e com todos os clichês contra, o tempero deveria ser dado naquele jantar, numa tentativa de reverter os sabores. Ele combinou o local chique.
Reservou mesa. Separou uma data especial, porque segundas à noite não costumam servir de pano para romantismo algum. Foi original. Mandou flores. Tudo bem que as rosas colombianas eram tão vermelhas quanto as marcas do pescoço dele, mesmo assim, uma retaliação ao horror.
O presente chegou no trabalho para se fazer inveja a todas. Tudo bem que a selfie dele no shopping falando disso tenha sido postada antes de o entregador aparecer. Ainda assim era uma retaliação ao horror.
Poderia ser uma premonição à felicidade ou apenas o acaso, mas a música que ela escutou assim que entrou no carro de volta pra casa apareceu por ali, embora tenha sido apenas os acordes finais. Sim. Ele estava disposto a tudo.
Quando passou pela portaria do prédio, o sr. Aníbal a chamou e lhe estendeu uma caixinha: brincos de ouro. Alguém escutou violinos? Sim. Talvez Strauss estivesse por ali, valsando com ela até o décimo primeiro andar. Pode ter sorrido o primeiro sorriso sincero e despretensioso.
Entrou. Tomou banho ao som de Air Suplly, no volume máximo. Coube no vestido como deveria ser. Não se maquiou tanto, porém destacou os olhos e os lábios. Vestiu-se dos brincos e seguiu para o local. Deu quatro voltas no quarteirão para chegar 10 minutos depois. Foi até a hostess e disse que o namorado a esperava numa mesa.
Acertou, porém ele ainda não estava lá. Raridade aquilo. Pediu um drink e mandou um "Já peço o mesmo de sempre a você?". Em 5 minutos, houve nada. Mandou um "Chegando?" e nada. 20 minutos depois, o "Cadê você?" já trazia uma certa dose de fel. Quase 40 minutos de atraso, e um "Amor, a reunião vai longe, desculpe...".
Pensou em tudo aquilo. Nos brincos, no jantar, nos presentes, na música e tentou entender o que havia de errado. Pagou o drink envergonhada, porque teve a certeza de que a hostess tinha pena dela. Saiu pra casa com ódio e pena de si mesma.
Parou numa esquina e viu que um mendigo servia uma salsicha suja ao leal vira-lata, que retribuía a ele entre mordidas e lambidas. E viu que tinha de fazer. Ficou claro. Se quisesse algo de verdade, teria de reverter o jogo. Traria para si a própria felicidade.
Chegou em casa, abriu a dispensa e a geladeira e resolveu fazer um jantar. Colocaria todo talento na cozinha. Pegaria a situação pelo estômago, porque a mãe dizia que um tempero bom segura até estação. E sabia que aquela torta de queijo canastra e alho-poró confundiria até os deuses.
Ela mandaria o aviso, mas decidiu chegar de surpresa, porque surpresas sempre temperam o sonso e o inodoro. Estava impecável e, duas horas depois, saía linda, decidida e com a certeza de conquista. E foi o que aconteceu. O sorriso foi acolhedor. Chorou de alegria por ter se amado e por dar amor. O olhar que recebeu dele foi o mais lindo de sua vida.
A surpresa e o presente também. Não se falaram, ele apenas deu um "obrigado", mas um "obrigado" tão sincero, tão feliz, que até o cachorro, se soubesse falar, falaria. Deu uma lambida na mão dela e se deliciou com a torta, comeu mais que o dono.
Na volta, ela ligou o rádio, radiante, e, se mais cedo a música de ambos tocara, mesmo que os acordes finais, desta vez nem isso aconteceu...
Leitura deliciosa e necessária para quem, como eu, fica bitolado com leituras exclusivas para concurso.
ResponderExcluirE a vida é feita disso também, Carol! Obrigado!
ExcluirPuxa! Que belo e bem redigido texto. O amor obtido em reciprocidade, ainda mais tão sincero, é o verdadeiro "tempeiro" da vida, mesmo vindo de um cachorro.
ResponderExcluirObrigado, Suan! Amor de cão deveria ser impregnado em todos!
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