terça-feira, 9 de junho de 2015

O CORPO CONSAGRADO

Samara tem apenas 10 anos e está na casa de uma amiguinha da vizinhança. Parece que a mãe da menina trabalha às tardes, tal qual à da vizinha. Estão sozinhas. Um CD de algum MC aparece por ali. A batida começa e as garotas começam a dançar, mexendo de um lado a outro, indo até o chão. E dançavam despretensiosamente, como despretensioso é pular amarelinha e dar uma sopa imaginária à boneca.

Quitéria é dedicada às causas paroquiais. Diziam que vivia pra Igreja, porque o marido vivia pra bocha. Aposentado por invalidez, casou-se com o descompromisso e às vezes se lembrava da esposa, que pregava sempre a moral e os bons costumes. Estava vindo da paróquia, quando passou em frente da casa e viu as meninas dançando. Ficou chocada, escandalizada. Deveria ter dado uma bronca naquelas devassas, mas preferiu o silêncio.

Maria, a mãe da pecadora, limpava a casa de uma conhecida do bairro, a 4 quarteirões dali. Quitéria não titubeou. Foi tocar lá e levar o sermão pronto à mulher, que mal pôde entender toda a verborragia e fúria da carola. A patroa já olhava feio pelos berros e pela interrupção, quando Maria teve de sair e deixar a lamuriosa ainda mais espumada.

Quitéria saiu de lá enfurecida e chamou a atenção de duas vizinhas que cruzaram com ela pelo caminho. Questionada, ela não titubeou, desandou a gesticular e acusar as meninas. Concluiu que a influência da mãe, que casara de novo e que batera o portão na cara dela, era o motivo de tamanha ação lasciva e suja.

As vizinhas se enraivaram e engrossaram o coro. Seguiram Quitéria pelas ruas do bairro pisando firme. Ao chegarem na rua, ainda escutavam o batidão vindo do número 443. Bem que poderiam chegar até as duas e darem uma lição de purificação. Tudo pela moral e pelos bons costumes. Não. A líder encontrou um grupo de senhoras falando qualquer coisa sem importância, em vista do que acontecia a menos de 50 metros dali. Os olhares se arregalaram quando souberam o que as devassas faziam. 

Uma mãe ausente diz "presente" à perdição. Decepcionante. Uma limpeza deveria ser feita. Não precisava de ajuda, Quitéria seguiu até a igreja e chamou o próprio padre, para salvar as duas e ter um pouco de paz. Relatou a ele quão perdidas e sujas estavam as almas das crianças. Exigiu uma reação imediata, tudo pela moral e pelos bons costumes.

Padre Nogueira saiu de lá e foi até a casa da menina, flagrou-as gingando de um lado a outro, sem ritmo algum.  Ele ficou parado, observando o balançar das duas. Nada disse. Parecia muito mais apreciar do que repudiar a dança descompassada, como é descompassado o exato limite entre a infância e a adolescência.

Fato é que, ao vê-lo, o som se calou, elas pararam. Ele estendeu a mão a elas, ofereceu uma palavra e foi o que tiveram naquela tarde. 

Maria voltou com a cabeça cheia, ainda com a zarzuela da vizinha. Chegou em casa e encontrou a filha no canto, quieta. Soluçava baixinho entrecortando um suspiro e outro. E percebeu que estava em pé, no canto. Perguntou, insistiu, mas não teve resposta.

Provavelmente, o espírito santo tocou as duas e a hóstia que Quitéria tomaria no domingo sairia das mãos de um pedófilo. Que importa. Isso daria paz a ela. Quitéria dormiria feliz naquela noite, sozinha e com a sensação de dever cumprido, claro, tudo em nome da moral e dos bons costumes.

2 comentários:

  1. Complicado a alusão ao Espirito Santo. Um padre pedófilo nada tem a ver com o Espirito Santo, e sim a falta dele.

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  2. Fato, Willian, a vida geralmente é complicada!

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