Não fazia nem 5 meses que havia se aposentado de vez, e toda esforçada rotina que tinha conquistado estava para ser esquecida ou adiada por um tempo indeterminado. As sequelas do derrame foram cruéis e o homem de 61 anos se via naquela cama. Sem poder se mexer ou falar, forçava a, ao menos, trabalhar a mente, para que a paralisia não chegasse à sua razão.
Refez cautelosamente todo o seu itinerário de trás pra frente. O que protagonizara há um mês antes de cair nas sombras.
Acabou de tomar café e leu toda notícia daquela quarta-feira morna. O tempo estava claro e os 21 graus eram o convite de que precisava para seguir em frente. Caminhou por dois quarteirões e saudou os mesmos rostos que procuravam as mesmas coisas. Parou na banca de jornais e encontrou os novos amigos e o velho jornaleiro de anos.
Esticou um pouco mais o caminho e deixou por último o que mais se gabava por conseguir. Diziam todos da vizinhança que aquele pitbull de nariz rosa e bico branco e bege era ameaça do bairro. Quando passou a primeira vez por ele, mesmo não o vendo por inteiro - já que o bicho colocava apenas o focinho por debaixo do portão de ferro - sentiu o mesmo medo propagado pelas ruas e quarteirões.
Ele parou e se admirou daquele tamanho de focinho e pareceu amigável. Calculou que o cão não conseguiria, por mais feroz que fosse, abocanhá-lo. Olhou aos lados e se sentiu desafiado. Esticou lentamente a mão e deixou que o focinho se acendesse. Segundos depois respondeu numa sonora e deliciosa lambida. Sorriram ambos, cada qual do seu lado. Gabou-se tanto do fato que ganhou do velho amigo jornaleiro um livro só de cães, clicado por Elliot Erwitt.
E assim seguiu a vida por quase 5 meses. Naquela quarta-feira, não conseguiu completar o passeio. A caminho da banca, tudo se apagou e, quando a luz voltou, estava numa cama de hospital e agora na de casa. O lado esquerdo não se mexia, parou junto ao mundo e às vontades. Estava na companhia diária da esposa e de uma enfermeira, cortesia da formação que dera aos filhos.
Voltou a ser criança e voltou a sonhar como elas. Desejou conhecer o mundo de volta. Desejou ter os caminhos debaixo de seus pés mais uma vez. Não pediu as responsabilidades do trabalho, mas queria o ócio justo que aprendeu a desenvolver.
Não conseguia mais ver TV, não conseguia ler o jornal e odiou quando leram a ele. Percebeu que a velocidade da informação era diferente às pessoas. E sentiu a angústia da prisão de seu próprio mundo. Não queria encarcerar-se a sete chaves, mas ali estava. Não teve motivos para sair dali, talvez nem quisesse.
E naquela tarde ouviu um burburinho ao longe. A enfermeira não estava e a esposa tampouco. Acordara fora do horário habitual. Parecia um choro, um uivo, algo que o chamava para fora. E era. Aguçou os ouvidos, porque tinha de aprender a desenvolver tal habilidade e escutou um ganido agudo e sentido, quase um pedido.
Sim, era o pitbull. Ele sabia. Num esforço descomunal, consegui livrar-se do lençol. Acordou todos os músculos e se jogou no chão. A dor não apareceu porque decidiu não abrir a porta a ela. Estava na sala e seguiu os ganidos, conseguiu perceber que estavam perto. E chegou até o portão, não era o mesmo portão de ferro, mas ali estava o mesmo focinho.
Esticou o braço e as lambidas vieram. Num esforço ainda maior, decidiu colocar o rosto e deixar-se beijar pela fera assustadora dali. E percebeu que enfim veria os olhos dele. Levantou a cabeça e olhou um olhar que nunca tinha visto e foi com esse gesto que levou para si a última lembrança de vida.
A enfermeira não poderia explicar. Tinha ido apenas ao banheiro. A esposa também não deu justificativas ao ocorrido, mas havia um sorriso leve naquele rosto frio e, mais espantoso ainda, como Elliot Erwitt, que estava na estante, havia parado nas mãos frias daquele corpo inerte em cima da cama.
LINDO texto! Quando era mais nova, minha mãe me buscava na escola e todos os dias na volta para casa, passávamos por uma casa azul onde tinha um cachorrão que latia sempre que alguém passava. De tanto passarmos lá, acabamos criando laço com o cachorro que em pouco tempo passou a por o focinho entre as grades para nos cheirar e darmos carinho. Batizamos a cachorra, sim era uma cachorra, de marronzinha devido ao focinho. Esse texto me lembrou dela :)
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ResponderExcluirIngrid, com certeza eles fazem parte de nossas vidas! Obrigado!
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