terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O MEU E O SEU POLENGUINHOS

Desde sempre, a moça era conhecida como fazedora de milagres. Não existia a palavra impossível a ela. Sempre lidou com o "provável" como clichê e com o "incrível" como lema. Tudo começou aos 4 anos, quando o pai - sem intenção alguma - disse à filha que ela não conseguiria dar banho no gato, porque todos já haviam tentado. E não é que a bandidinha, com jeito e talento, conseguiu não só o banho, conseguiu um banho de lambidas depois. E aqui a lenda começara.

Aos 11, quando a família toda entrou na estrada e o pneu furou, ninguém conseguira desparafusar aquela roda, o mundo viria abaixo se ela não o fizesse. O mundo não veio, apenas a chave de roda desceu com força aos pulos da menina nele.

Ou quando, aos 16, tomou para si o homem que ninguém conseguira, digno de estrelas de Hollywood, mas ela - não se sabe se pelo talento, pelo destino ou pela insistência, - acabou fazendo dele seu para o resto da vida.

E, hoje, quase 15 anos depois, e com a primeira e única filha de 3 anos, às portas do primeiro dia de aula, tinha a missão de fazer a primogênita não engrossar a estatística do choro. Cansou de ouvir as mães dizerem que era impossível não haver lágrimas. 10 entre 10 crianças choravam ou chorariam, a dela não, porque mais um milagre estaria para acontecer.

A dois meses das aulas, a mãe começou a estratégia. 

Primeiro, sentou a filha na cama, sentou-se no chão e, olho no olho, em tom assertivo, mas doce, teve uma longa conversa sobre a função de cada um na Terra. Em tom infantil, conseguiu que a menina entendesse que um pedaço de queijo poderia gerar várias fatias, e e elas poderiam ir para a pizza, para o lanche, mas que ainda assim continuariam sendo uma coisa só.

A 45 dias, comprou dois polenguinhos e disse à filha que, mesmo separados, eles pertenciam um ao outro. O que ficasse com a mãe seria da filha e vice-versa. Ao término do dia, ela pediria o poleguinho de volta, e este deveria estar bem cuidado e vice-versa. Foi o que aconteceu.

A um mês, disse à filha que ficaria com a vizinha por duas horas. Que sempre algo poderia acontecer, que a mãe poderia ter um imprevisto - porque imprevistos existem para provar que a vida é para os fortes - mas que o polenguinho de cada uma estaria sob os cuidados delas e que voltariam à dona no fim do período. E foi o que aconteceu. A menina, como uma adulta, ficou com a vizinha por duas horas, e a mãe, colada à parede, certificou-se de que o choro não veio.

A 15 dias das aulas, o teste mais difícil: deixar a filha por uma semana e por uma hora em cada dia na escola, como adaptação. A mãe levou a menina pela mão. Parou em frente do imponente URSINHO BRANCO, agachou-se buscando o olhar da filha, que sorriu, estendeu a mão, deu o polenguinho e pegou o da mãe. Elas se beijaram e a menina entrou.

Por 7 dias e por 7 horas, a filha devolveu o polenguinho intacto e sem lágrimas. Realmente a mãe calaria a boca de todos que a desafiaram.

Na manhã do primeiro dia de aula, a mãe sentou a menina na mesa e disse que agora seria o momento de confiança. Disse que não seria mais uma hora, as 6 horas deveriam ser encaradas da mesma forma. Enfatizou que a filha estava pronta. Que a mãe deveria reassumir o comando da rede de salão de beleza e que o polenguinho da filha estaria são e salvo ao término das tarefas.

Perguntou à filha se poderia prometer a mesma coisa, e ambas trocariam os queijos no fim do dia. A pequena sorriu e disse que sim. Depois do almoço, saíram do carro e caminharam de mãos dadas até o colégio. Ouvia-se o choro de muitos por lá, sinal de perigo para a mãe, que olhou e percebeu que a menina quase pulava até o local, em passos de amarelinha. Acalmou-se.

Pararam em frente ao colégio, e, em meio à choradeira, ela agachou-se e já encontrou uma menina sorridente com o polenguinho estendido e a outra mão pedindo o seu. A mãe sorriu. Entregou o queijo e tomou o da filha para si. E a menina entrou feliz e calma. Mais uma vez, ela conseguiu.

Era difícil explicar como entre tantas crianças que choravam havia uma devorando um suculento polenguinho, e como seria difícil também explicar por que aquela mulher, parada no farol, beijava e acariciava, entre urros de desespero e lágrimas, um outro suculento polenguinho...




terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O FOCINHO DO PITBULL

Não fazia nem 5 meses que havia se aposentado de vez, e toda esforçada rotina que tinha conquistado estava para ser esquecida ou adiada por um tempo indeterminado. As sequelas do derrame foram cruéis e o homem de 61 anos se via naquela cama. Sem poder se mexer ou falar, forçava a, ao menos, trabalhar a mente, para que a paralisia não chegasse à sua razão.

Refez cautelosamente todo o seu itinerário de trás pra frente. O que protagonizara há um mês antes de cair nas sombras. 

Acabou de tomar café e leu toda notícia daquela quarta-feira morna. O tempo estava claro e os 21 graus eram o convite de que precisava para seguir em frente. Caminhou por dois quarteirões e saudou os mesmos rostos que procuravam as mesmas coisas. Parou na banca de jornais e encontrou os novos amigos e o velho jornaleiro de anos.

Esticou um pouco mais o caminho e deixou por último o que mais se gabava por conseguir. Diziam todos da vizinhança que aquele pitbull de nariz rosa e bico branco e bege era ameaça do bairro. Quando passou a primeira vez por ele, mesmo não o vendo por inteiro - já que o bicho colocava apenas o focinho por debaixo do portão de ferro - sentiu o mesmo medo propagado pelas ruas e quarteirões.

Ele parou e se admirou daquele tamanho de focinho e pareceu amigável. Calculou que o cão não conseguiria, por mais feroz que fosse, abocanhá-lo. Olhou aos lados e se sentiu desafiado. Esticou lentamente a mão e deixou que o focinho se acendesse. Segundos depois respondeu numa sonora e deliciosa lambida. Sorriram ambos, cada qual do seu lado. Gabou-se tanto do fato que ganhou do velho amigo jornaleiro um livro só de cães, clicado por Elliot Erwitt.

E assim seguiu a vida por quase 5 meses. Naquela quarta-feira, não conseguiu completar o passeio. A caminho da banca, tudo se apagou e, quando a luz voltou, estava numa cama de hospital e agora na de casa. O lado esquerdo não se mexia, parou junto ao mundo e às vontades. Estava na companhia diária da esposa e de uma enfermeira, cortesia da formação que dera aos filhos.

Voltou a ser criança e voltou a sonhar como elas. Desejou conhecer o mundo de volta. Desejou ter os caminhos debaixo de seus pés mais uma vez. Não pediu as responsabilidades do trabalho, mas queria o ócio justo que aprendeu a desenvolver.

Não conseguia mais ver TV, não conseguia ler o jornal e odiou quando leram a ele. Percebeu que a velocidade da informação era diferente às pessoas. E sentiu a angústia da prisão de seu próprio mundo. Não queria encarcerar-se a sete chaves, mas ali estava. Não teve motivos para sair dali, talvez nem quisesse.

E naquela tarde ouviu um burburinho ao longe. A enfermeira não estava e a esposa tampouco. Acordara fora do horário habitual. Parecia um choro, um uivo, algo que o chamava para fora. E era. Aguçou os ouvidos, porque tinha de aprender a desenvolver tal habilidade e escutou um ganido agudo e sentido, quase um pedido.

Sim, era o pitbull. Ele sabia. Num esforço descomunal, consegui livrar-se do lençol. Acordou todos os músculos e se jogou no chão. A dor não apareceu porque decidiu não abrir a porta a ela. Estava na sala e seguiu os ganidos, conseguiu perceber que estavam perto. E chegou até o portão, não era o mesmo portão de ferro, mas ali estava o mesmo focinho.

Esticou o braço e as lambidas vieram. Num esforço ainda maior, decidiu colocar o rosto e deixar-se beijar pela fera assustadora dali. E percebeu que enfim veria os olhos dele. Levantou a cabeça e olhou um olhar que nunca tinha visto e foi com esse gesto que levou para si a última lembrança de vida. 

A enfermeira não poderia explicar. Tinha ido apenas ao banheiro. A esposa também não deu justificativas ao ocorrido, mas havia um sorriso leve naquele rosto frio e, mais espantoso ainda, como Elliot Erwitt, que estava na estante, havia parado nas mãos frias daquele corpo inerte em cima da cama.